sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Austeridade?


A pergunta fazia a manchete da capa da última edição do Semanário “Sol” que, abaixo, avançava com quatro possíveis respostas, evocando os honorários pagos pela Portugal Telecom ao seu administrador Rui Pedro Soares, os subsídios compensatórios do Governo Regional dos Açores aos funcionários públicos do Arquipélago, a intenção da RAVE avançar com a obra do TGV e o custo dos acessos ao novo Hospital de Braga.
No primeiro caso, o tiro parece-nos deslocado. As milionárias retribuições pagas por uma empresa privada a um seu Administrador, independentemente de este ser um destacado militante socialista sem carreira de registo, a ascensão meteórica deste na empresa e as regalias de que usufrui após o seu “emprateleiramento” no pós-processo Face Oculta não são questões que contendam com a austeridade pública, especialmente se esquecermos o seu eventual envolvimento na concretização do pequeno-almoço [entre Figo e José Sócrates] mais caro dos tempos modernos.
Antes, poderão ser mesmo a base para um qualquer argumento de um filme cor-de-rosa sobre a forma como o “sonho americano” também se transforma em realidade em Portugal.
Bem pelo contrário, as três restantes situações invocadas são bastante mais delicadas do ponto de vista da adopção de políticas de austeridade no sector público.
Isto porque, sabendo-se da dureza das medidas que foram e serão aplicadas neste contexto, a sua aceitação requer que sejam cumpridos alguns requisitos, relativos à sua coerência, ao seu equilíbrio e justiça e à sua credibilidade.
Tal como já havia acontecido em relação à discussão sobre se a incidência dos cortes dos vencimentos dos funcionários públicos se alargava ao sector empresarial do Estado, a possibilidade de os funcionários públicos dos Açores serem compensados pelo corte de vencimentos decidido pelo Governo rompe com as mais elementares regras do bom senso.
Entre os dois casos, há, porém, uma ligeira diferença: enquanto que na primeira situação se admitia que certas franjas do sector empresarial do Estado pudessem não estar directamente abrangidas pelo corte médio de 5% decretado pelo Governo, os funcionários públicos Açorianos poderão passar incólumes a esta medida graças à atribuição de um subsídio extraordinário por parte do Governo Regional.
O Presidente do Governo Regional dos Açores procurou justificar a medida com motivações de natureza económica e social – a intenção de manter o poder de compra a cerca de 3.700 funcionários que pertencem à classe média baixa local -, e até argumentou que a mesma não originava um aumento de encargos mas traduzia apenas uma alteração das prioridades da despesa pública Regional.
Todavia, a mesma contribui para a erosão do tal sentimento de equidade e justiça entre os funcionários da administração pública e levanta legítimas dúvidas sobre a razoabilidade das verbas transferidas para o Governo Regional dos Açores (claramente favorecido aquando da última Lei das Finanças Regionais do Governo Sócrates).
Em última análise, a iniciativa de Carlos César poderá apenas ser lida como mais um dos actos de revolta que vão grassando no seio do Partido Socialista contra a governação de José Sócrates. Ainda assim, pela leitura “nacional” desta iniciativa, exige-se que a mesma não seja apenas escrutinada pela via legal.
Relativamente às duas notícias que envolvem obras públicas, de valores claramente distintos mas com sintomas idênticos de despesismo, as mesmas ameaçam sobretudo a componente da coerência e credibilidade da política de austeridade.
Por um lado, refere-se que a RAVE (Empresa responsável pela Rede de Alta Velocidade) está a dar sequência ao processo que envolve o Concurso Público para a construção do troço Poceirão-Caia, que faz parte da linha Lisboa-Madrid do TGV, mesmo sabendo-se que um dos pressupostos do acordo alcançado para a viabilização do Orçamento consiste na reavalaição destes investimentos.
Prossegue assim no terreno a disputa inter-ministerial que se vem arrastando ao longo de todo este mandato, entre alguma tentativa de racionalidade financeira incutida pelo Ministro das Finanças e a deslocada ambição Fontista do Ministério das Obras Públicas.
Em Braga, um quilómetro de estrada que vai garantir o acesso ao novo Hospital Central – a inaugurar em Maio de 2011 – reveste-se de várias particularidades.
Em primeiro lugar, com um valor global de 8,2 milhões de Euros, este acesso entra seguramente no ranking do maior custo por quilómetro das estradas do País.
Por outro lado, não está sequer assegurado que o mesmo esteja concluído antes da data prevista para a abertura do Hospital.
Em terceiro lugar, não deixa de ser estranho que um acesso previsto desde a data de lançamento do concurso do Hospital (em 2005) tenha que ser adjudicado por ajuste directo a escassos meses da conclusão da obra do referido equipamento. E que, para cúmulo, os últimos meses deste atraso tenham resultado da incúria da Câmara Municipal na protecção de um Monumento Nacional visado pelo projecto inicial do acesso.
Mas, como dizia Ernâni Lopes há cerca de um ano, em Portugal “faltam ideias, verdade, força, lucidez, substância, garra e densidade política nas medidas económicas”, evidenciando-se “uma incapacidade de concretizar o que tinha sido programado e um desempenho muito fraco”.
Daí que, concluísse o ex-Ministro das Finanças “Portugal auto-limitou-se e enganou-se a si próprio”, sugerindo que “nos últimos dez anos, a sociedade foi iludida por promessas políticas irrealistas e não concretizáveis” e assegurando que “Portugal tem mostrado uma leitura fantasiosa da realidade económica, sem rasgo para o futuro, numa atitude interesseira e egoísta, vazia de substância, sem horizonte e sem nobreza”.
Ernâni Lopes, uma personalidade de perfil austero mas de uma imensa credibilidade, parte no final de uma “década perdida e historicamente inaceitável” para o País por que sempre lutou.

Sem comentários: