quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

2009 em marcha-atrás


A cada final do mês de Dezembro, cumpre fazer a retrospectiva do ano que se apresta a findar e formular votos e desejos para o ano novo que se avizinha num ritual cíclico que faz equiparar as nossas vidas aos mais elementares mecanismos de controlo de gestão de uma qualquer organização.
Começando pelo fim, o ano de 2010 chegará com um enorme manto de incerteza, tal é o panorama de instabilidade social, económica e política que se vislumbra no horizonte.
E se na vertente política bastará que os principais protagonistas se foquem no essencial e deixem de fazer jogos estratégicos para tentar fazer prevalecer os seus interesses, nas componentes económica e social manter-se-ão os tempos de dificuldade.
Afinal, por mais proclamações oficiais que possam ser feitas por uma qualquer Alice no País das Maravilhas, o cenário é ainda pesado e não há miríade de investimento público alguma que possa contribuir para o inverter da situação, quer numa óptica de curto, quer de médio e longo prazo.
Falta uma estratégia de desenvolvimento económico sustentada. Faltam agentes económicos dinâmicos e capazes de alicerçar superiores níveis de criação de riqueza e emprego. Falta um real espírito de inovação, empreendedorismo e produtividade. Falta um enquadramento institucional que catalise o investimento privado e proteja o normal desenrolar da actividade económica. Falta uma outra cultura financeira. Faltam qualificações que não se cinjam aos progressos estatísticos que resultam de um qualquer oportunismo. Falta um Estado que proteja mas não se limite a sustentar a indolência. Falta Governo. Falta vontade. Falta verdade. Falta valor.
Neste quadro geral, nem sei se os bons exemplos e os parcos casos de sucesso servem para mitigar a demais realidade ou se sobre eles cai a expectativa da inevitabilidade de um destino que de forma alguma conseguirão contornar e devem ser vistos como uma expressão fugaz de excepção.
Poder-se-á dizer que esta é apenas a versão pessimista que vem grassando pela opinião pública e publicada de alguns anos a esta parte. Mas a verdade é que os ecos de 2009 em muito ajudaram a dar corpo a este sentimento geral.
Num ano que se iniciou com o País a lamber as feridas da falência iminente de duas instituições financeiras de relevo -o BPN e o BPP-, o que deu origem a uma incontrolável injecção de fundos públicos e a uma total perda de credibilidade dos mecanismos de supervisão, o próprio Estado mergulha nas malhas da pré-insolvência, com uma enorme derrapagem do défice orçamental, com uma dívida pública (principalmente externa) galopante e com o impacto deste quadro sobre a notação de rating do País.
Não muito longe, colegas de longa data da aventura europeia atravessam dificuldades semelhantes, num exemplo que deveria ser mais elucidativo quanto ao impacto de certo tipo de descuidos e mais clarividente quanto ao caminho a seguir.
À primeira esquina, bem o sabemos, voltará a ser exigido um esforço de contenção, um contributo de todos para o desiderato colectivo que rapidamente sentiremos no apetite da máquina fiscal e nas políticas que continuam a achar que o Estado gere melhor os recursos que os cidadãos.
Do par de robalos que se transaccionou numa qualquer banca de peixe mais ou menos graúdo aos negócios da comunicação social que validam reorientações editoriais al gusto, este não foi de todo um ano de boas notícias.
E, por mais que se voltassem a ver os shoppings a transbordar nas vésperas de Natal e os pacotes de férias a esgotar para os mais diversos destinos, os dados do INE sempre serviam para lembrar que o desemprego já ultrapassa os dois dígitos e não deve parar por aqui, mesmo nas zonas que não são estruturalmente deprimidas.
Se em alguns casos os recursos financeiros bebem Red Bull - que lhes dá asas para voarem para outras paragens -, no QREN devem andar a tomar chã de camomila – que lhes provoca tamanha letargia que tardam em sair das gavetas dos responsáveis dos Programas Operacionais.
Mas, ao contrário de muitos dos males antes retratados, aqui o tempo resolve. Só pode.
Um feliz ano de 2010.

sábado, 19 de dezembro de 2009

O valor da água III


Partindo da observação sobre o impacto das mudanças nos tarifários do abastecimento de água sobre os resultados eleitorais em alguns Municípios do País aquando das últimas eleições autárquicas, pude ao longo das últimas duas semanas versar alguns dos factores que condicionam este sector de actividade hoje vital para as comunidades.
Assim, além de aludir aos múltiplos apelos e estudos que defendem a harmonização de tarifários, na forma e nos valores, à regulamentação e legislação que conduzirão a tal desiderato de forma incontornável no curto prazo e, até, aos fundamentos económicos, financeiros, ambientais e sociais que podem justificar o inevitável aumento dos preços deste bem, deixei expressa a minha convicção quanto à imposição próxima da necessidade de um modelo de fundamentação de base local.
A concluir esta “trilogia da água”, não poderia deixar de abordar um outro aspecto, intimamente relacionado com os anteriores, que pode ele próprio agravar a leitura que os cidadãos poderão fazer dos referidos aumentos que se irão processar nos tarifários das águas e serviços conexos ao longo dos próximos anos.
A saber, refiro-me à participação crescente de empresas e investidores privados no sector, quer através da concessão do serviço, quer através da participação nos capitais de empresas municipais e multimunicipais nas quais esta actividade se encontra delegada por diferentes Municípios.
O cerne da questão consiste na apreciação que os cidadãos farão da opção de organismos públicos pela abertura à intervenção de agentes privados num sector nuclear do ponto de vista estratégico, com procura garantida e com progressivos aumentos dos preços impostos pela via normativa. Tanto mais que, na generalidade das situações em que esta opção se verifique, será difícil explicar que os aumentos em questão não resultam exclusivamente da “gula” do novo parceiro privado.
Como também é compreensível, a situação tender-se-á a agravar na percepção dos cidadãos quando tais empresas ostentarem resultados positivos e procederem, inexoravelmente, à distribuição de rendimentos pelos seus accionistas.
Começando pelo princípio, a abertura a tais formas de colaboração com agentes privados pode derivar de muitas ordens de razões: o aproveitamento de know-how específico, a obtenção de sinergias com sectores de actividade conexos, o recurso a formas de gestão menos pesadas do ponto de vista administrativo/formal, o acesso a uma superior capacidade de investimento e/ou o contornar de dificuldades de acesso ao crédito ou a mera lógica de captação de uma receita de cariz extraordinário para financiar outro tipo de prioridades.
Com excepção deste último caso, cujos custos “políticos” podem ser manifestamente superiores, em todas as outras hipóteses a concretização da parceria tem em vista a melhoria do serviço prestado aos munícipes nesta esfera específica.
Assim sendo, o segredo do sucesso de tais parcerias assenta em quatro pilares fundamentais: a definição de condições financeiras justas, que salvaguardem o interesse público; a imposição de compromissos de investimento rigorosamente calendarizados, quer na expansão, quer na manutenção da rede de abastecimento; a definição de parâmetros de qualidade e respectiva monitorização de excelência; e o estabelecimento de mecanismos de controlo sobre os tarifários a praticar.
Obviamente, estas condições deverão estar salvaguardadas quer nos Cadernos de Encargos dos processos de concessão, quer nos Acordos Parassociais inerentes a eventuais alienações de parcelas de capital de empresas municipais ou multimunicipais.
Quanto à questão da rentabilidade, a única atenuante poderá passar pela assunção de cláusulas de diferente natureza que balizem a eventual distribuição de resultados pelos accionistas: a título de exemplo, a imposição de tectos percentuais sobre o valor do investimento anual realizado, a obrigatoriedade de ter um certo prazo médio de pagamentos a fornecedores, a necessidade de fazer depender tal distribuição da amortização de parte do capital em dívida, entre várias outras possibilidades socialmente valorizadas.
Ora, estes princípios podem igualmente aplicar-se a qualquer outro sector de actividade de natureza eminentemente pública. Mas, também aqui, o mérito da participação privada poderá desde logo advir da viabilização de um conjunto de investimentos em projectos socialmente relevantes que os depauperados cofres públicos não conseguissem garantir de per se.
Neste caso, porém, há uma importante nuance que marca toda a diferença. Se é naturalmente legítimo, até à luz da dita fundamentação dos tarifários, que o parceiro privado se aproprie de parte do benefício que compensa os custos pelos investimentos realizados, pela gestão das operações e da remuneração do capital empregue, deve também apoderar-se da parte do aumento do preço que visa racionalizar o consumo?
A gestão das verbas resultantes dessa parcela do tarifário será, porventura, uma das mais importantes questões a cuidar em matéria de políticas públicas para este sector.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O valor da água II


Iniciei na passada semana um conjunto de artigos sobre a problemática do abastecimento de água que tomou como pano de fundo o impacto das mudanças nos tarifários praticados sobre os resultados eleitorais em alguns Municípios do País aquando das últimas eleições autárquicas.
Como referi, mais do que essa análise circunstancial, importa enquadrar esta questão à luz da tendência generalizada para o aumento de preços que se irá verificar ao longo dos próximos anos, quer por razões económicas (de mercado), quer por factores financeiros (ligados à sustentabilidade das empresas que prestam tal serviço), quer até por disposições normativas, nacionais e internacionais, que versam ou irão versar esta matéria.
Se há uma convergência generalizada quanto a essa necessidade de aumento dos tarifários, as opiniões têm sido mais díspares e até pouco concretas em relação ao valor correcto que deve ser praticado aos consumidores finais, tal é a discrepância hoje verificada no conjunto do País e mesmo a nível internacional.
Ainda assim, se quisermos um referencial indicativo podemos atender a estudos da OCDE que apontam para um valor estimativo do peso máximo da factura da água e esgotos no orçamento dos consumidores na ordem dos 2,5% quando hoje essa despesa deve corresponder a pouco mais que 0,1% para o cidadão médio português.
Mas, o que pode justificar tal discrepância? A existência de condicionantes políticas na definição dos tarifários parece ser novamente o factor mais relevante.
Tome-se o exemplo de uma autarquia de média dimensão com cujos responsáveis discuti recentemente esta problemática: sem ter em conta os custos administrativos de gestão da operação, os desperdícios, as dificuldades de cobrança dos valores facturados e de estímulo à ligação ao abastecimento público, o valor angariado de receita pela distribuição de água não ultrapassa o equivalente a 25% dos custos suportados pela Autarquia com a aquisição da água à empresa fornecedora, também ela de capitais exclusivamente públicos.
O diferencial traduz obviamente a assunção de um custo social por parte do Município, aplicado de forma generalizada em benefício de todos os consumidores locais, mas assumindo já um peso significativo no próprio orçamento da Autarquia o que torna a situação manifestamente insustentável.
Perante este tipo de circunstâncias, que se multiplicam um pouco por todo o País, a tendência será para a fixação do preço da água a um valor que garanta o equilíbrio económico-financeiro dos agentes do mercado e que funcione também como um incentivo à utilização racional e sustentável desse recurso exíguo.
De uma forma simplista, poder-se-ia dizer que cumpre aplicar os princípios do poluidor-pagador e do utilizador-pagador, sem descurar a necessidade de promover uma ajustada discriminação de preços entre diferentes tipos de utilizadores, seja em função da sua natureza (consumidores domésticos, indústria, agricultura ou comércio e serviços), da sua capacidade económica ou de outro tipo de objectivos das políticas públicas (como os descontos aplicáveis às famílias numerosas).
Quanto à fixação do valor justo da água, a Directiva-Quadro em vigor na União Europeia estabelece no seu Artigo 9º que “os Estados-membros devem ter em consideração o princípio da recuperação dos custos dos serviços da água, incluindo os custos ambientais e os custos de escassez de recurso”, consistindo os “serviços da água” na “provisão, às actividades económicas e aos consumidores domésticos e instituições públicas, de serviços de captação, armazenamento, tratamento e distribuição de água (de superfície ou subterrânea) e de drenagem, tratamento e rejeição de águas residuais em águas de superfície”.
Trata-se, pois, de financiar todos os investimentos de criação das infra-estruturas nestes domínios, das operações de manutenção, conservação e renovação de tais infra-estruturas ao longo dos anos e o processo de exploração e gestão do “negócio”, ponderando tais custos pelo impacto ambiental do consumo e estimulando a referida utilização racional.
Isto é, os preços da água devem ser estabelecidos de forma a cobrirem os custos totais – custos de serviço, custos de escassez, externalidades económicas e externalidades ambientais, salvaguardando também a necessidade de respeito por exigentes padrões de qualidade do “produto” em questão.
Ora, até como justificação para as onerosas decisões políticas que terão que ser tomadas, a aplicação dos novos tarifários, deste e de outros serviços públicos, terá que passar por uma adequada fundamentação económico-financeira dos valores cobrados, em linha com o que hoje se verifica para as taxas e licenças das autarquias locais.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O valor da água I


A derrota do histórico Social-Democrata Fernando Reis na Câmara Municipal de Barcelos foi um dos factos que marcaram as últimas Eleições Autárquicas.
Se uma análise mais distante poderia apontar para uma eventual saturação do eleitorado, que não teve correspondência noutras circunstâncias análogas, o observador mais interessado e que se digne questionar aos eleitores locais a razão para tal mudança dificilmente obterá uma resposta diversa da que aponta para os aumentos verificados no preço da água no decurso do último mandato.
Não muito longe, outra Autarca de grande projecção mediática, Fátima Felgueiras, passou boa parte da sua campanha eleitoral a imputar as culpas pelo agravamento verificado no custo da água à Águas de Portugal e, por inerência, ao Governo, consciente do impacto que tal facto poderia vir a ter, como veio, no processo eleitoral.
Em ambos os casos, a oposição (agora em funções) comprometeu-se a reduzir o preço da água após a respectiva eleição para preços socialmente mais justos, o que terá contribuído para as boas graças dos eleitores no momento da sua escolha.
Mais do que o impacto local, estas ocorrências revestem-se de contornos especiais uma vez que já afectaram ou virão a afectar vários outros Municípios ao longo dos próximos anos.
Situações similares, aliás, terão sucedido em vários outros pontos do País, e estado igualmente na base de algumas das dezenas de mudanças de Presidência de Câmara verificadas.
Na base desta circunstância está a constatação múltiplas vezes repetida por entidades como a DECO – Associação de Defesa do Consumidor ou a ERSAR (ex-IRAR) – Entidade Reguladora para o Sector das Águas e Resíduos de que existe uma enorme discrepância entre os preços e modalidades de tarifários praticados pelas diferentes Autarquias, com diferenças que podem ascender às centenas de Euros numa base anual, para consumos equivalentes.
Mais a mais, tais diferenças não são hoje economicamente sustentadas em qualquer tipo de fundamentação, pelo que só podem ser genericamente imputadas aos custos operacionais da sua captação, tratamento e distribuição, ao modelo de gestão das entidades responsáveis por tal fornecimento e às opções políticas incidentes sobre estes tarifários nas diferentes Autarquias do País.
A este nível, registe-se que um dos mais importantes passos para a harmonização dos tarifários foi já dado no decurso do presente ano com a publicação de uma Recomendação pelo IRAR relativa à formação de tarifários dos serviços públicos de abastecimento de água para consumo humano, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, dirigida às entidades gestoras dos sistemas municipais e multimunicipais que prestem esses serviços aos utilizadores finais, independentemente do modelo de gestão adoptado, bem como às entidades que possuam competência para a aprovação dos respectivos tarifários.
Esta iniciativa, que decorre também da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto - que estabelece o regime jurídico dos serviços municipais e intermunicipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos -, já no início de Janeiro, centra-se, porém, na formulação dos tarifários e não nos respectivos valores.
Ainda assim, quer no âmbito da Directiva-Quadro da Água da União Europeia, quer em diversos documentos estratégicos de cariz nacional, e com natural sequência nas intervenções públicas dos titulares da pasta do Ambiente (antes, Nunes Correia, agora, Dulce Pássaro) constam referências às prementes actualizações ao valor do preço da água praticado junto dos consumidores finais em montantes que podem vir a ser bastante impactantes do ponto de vista económico e social.
Daí que se possa questionar, qual será o valor justo para a água?
Em Barcelos, a empresa concessionária do serviço encontra-se em falência técnica e já assumiu que a água terá que aumentar novamente mais 38% no próximo ano para garantir o seu equilíbrio financeiro, ao invés da redução de 50% avançada pelo novo Presidente, Miguel Costa Gomes, no decurso da campanha eleitoral.
A proposta, já reprovada pela Autarquia, pode vir a redundar no resgate da concessão, através do pagamento de uma avultada cláusula indemnizatória. Mas, qualquer que seja a opção tomada, resolverá a questão de fundo?
Voltarei a esta temática na próxima semana.