sábado, 19 de dezembro de 2009

O valor da água III


Partindo da observação sobre o impacto das mudanças nos tarifários do abastecimento de água sobre os resultados eleitorais em alguns Municípios do País aquando das últimas eleições autárquicas, pude ao longo das últimas duas semanas versar alguns dos factores que condicionam este sector de actividade hoje vital para as comunidades.
Assim, além de aludir aos múltiplos apelos e estudos que defendem a harmonização de tarifários, na forma e nos valores, à regulamentação e legislação que conduzirão a tal desiderato de forma incontornável no curto prazo e, até, aos fundamentos económicos, financeiros, ambientais e sociais que podem justificar o inevitável aumento dos preços deste bem, deixei expressa a minha convicção quanto à imposição próxima da necessidade de um modelo de fundamentação de base local.
A concluir esta “trilogia da água”, não poderia deixar de abordar um outro aspecto, intimamente relacionado com os anteriores, que pode ele próprio agravar a leitura que os cidadãos poderão fazer dos referidos aumentos que se irão processar nos tarifários das águas e serviços conexos ao longo dos próximos anos.
A saber, refiro-me à participação crescente de empresas e investidores privados no sector, quer através da concessão do serviço, quer através da participação nos capitais de empresas municipais e multimunicipais nas quais esta actividade se encontra delegada por diferentes Municípios.
O cerne da questão consiste na apreciação que os cidadãos farão da opção de organismos públicos pela abertura à intervenção de agentes privados num sector nuclear do ponto de vista estratégico, com procura garantida e com progressivos aumentos dos preços impostos pela via normativa. Tanto mais que, na generalidade das situações em que esta opção se verifique, será difícil explicar que os aumentos em questão não resultam exclusivamente da “gula” do novo parceiro privado.
Como também é compreensível, a situação tender-se-á a agravar na percepção dos cidadãos quando tais empresas ostentarem resultados positivos e procederem, inexoravelmente, à distribuição de rendimentos pelos seus accionistas.
Começando pelo princípio, a abertura a tais formas de colaboração com agentes privados pode derivar de muitas ordens de razões: o aproveitamento de know-how específico, a obtenção de sinergias com sectores de actividade conexos, o recurso a formas de gestão menos pesadas do ponto de vista administrativo/formal, o acesso a uma superior capacidade de investimento e/ou o contornar de dificuldades de acesso ao crédito ou a mera lógica de captação de uma receita de cariz extraordinário para financiar outro tipo de prioridades.
Com excepção deste último caso, cujos custos “políticos” podem ser manifestamente superiores, em todas as outras hipóteses a concretização da parceria tem em vista a melhoria do serviço prestado aos munícipes nesta esfera específica.
Assim sendo, o segredo do sucesso de tais parcerias assenta em quatro pilares fundamentais: a definição de condições financeiras justas, que salvaguardem o interesse público; a imposição de compromissos de investimento rigorosamente calendarizados, quer na expansão, quer na manutenção da rede de abastecimento; a definição de parâmetros de qualidade e respectiva monitorização de excelência; e o estabelecimento de mecanismos de controlo sobre os tarifários a praticar.
Obviamente, estas condições deverão estar salvaguardadas quer nos Cadernos de Encargos dos processos de concessão, quer nos Acordos Parassociais inerentes a eventuais alienações de parcelas de capital de empresas municipais ou multimunicipais.
Quanto à questão da rentabilidade, a única atenuante poderá passar pela assunção de cláusulas de diferente natureza que balizem a eventual distribuição de resultados pelos accionistas: a título de exemplo, a imposição de tectos percentuais sobre o valor do investimento anual realizado, a obrigatoriedade de ter um certo prazo médio de pagamentos a fornecedores, a necessidade de fazer depender tal distribuição da amortização de parte do capital em dívida, entre várias outras possibilidades socialmente valorizadas.
Ora, estes princípios podem igualmente aplicar-se a qualquer outro sector de actividade de natureza eminentemente pública. Mas, também aqui, o mérito da participação privada poderá desde logo advir da viabilização de um conjunto de investimentos em projectos socialmente relevantes que os depauperados cofres públicos não conseguissem garantir de per se.
Neste caso, porém, há uma importante nuance que marca toda a diferença. Se é naturalmente legítimo, até à luz da dita fundamentação dos tarifários, que o parceiro privado se aproprie de parte do benefício que compensa os custos pelos investimentos realizados, pela gestão das operações e da remuneração do capital empregue, deve também apoderar-se da parte do aumento do preço que visa racionalizar o consumo?
A gestão das verbas resultantes dessa parcela do tarifário será, porventura, uma das mais importantes questões a cuidar em matéria de políticas públicas para este sector.

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