Este artigo não tem desconto
Os Portugueses são um povo de paixões. No plano
do discurso, e qualquer que seja a temática, é difícil mantermo-nos
indiferentes, tendendo a assumir posições extremadas de apoio incondicional ou
de oposição convicta sobre cada matéria em apreço.
Entre outros factores, esse pode ser um dos
motivos que explica a comoção colectiva provocada pelas circunstâncias que
envolveram a promoção levada a efeito pelos supermercados Pingo Doce no passado
dia 1 de Maio.
Afinal, o tema invadiu as colunas de opinião, os
debates nas redes sociais, os espaços informativos de todos os meios de
comunicação, as conversas de café e até as intervenções públicas de governantes
e parlamentares desde essa data até hoje, como se estivesse em jogo algo de verdadeiramente
decisivo para o nosso futuro colectivo.
Mas, poderá perguntar: é normal uma cadeia de
supermercados lançar uma promoção que suscite tal adesão popular ao ponto de
provocar distúrbios e focos de violência que exijam a intervenção das forças policiais
em vários dos seus espaços comerciais?
E será que tais circunstâncias só ocorreram face
às difíceis circunstâncias económicas e sociais que o país atravessa, ao ponto
de a esmagadora maioria dos consumidores desse dia provirem de famílias com grandes
dificuldades financeiras?
Além da característica antes referida, os
portugueses são conhecidos por terem também memória curta ou por lhes faltar
perspectiva de enquadramento sobre determinadas realidades.
A saber, mesmo quando os combustíveis estavam a
um preço substancialmente inferior ao actual, alguém se lembra das filas de
carros que procuravam abastecer a um valor 2 ou 3 cêntimos inferior ao aumento
superveniente do dia seguinte?
E quem se recorda das filas (quando não
verdadeiros acampamentos que se iniciaram durante a madrugada) de fãs e
consumidores às portas de determinadas superfícies comerciais antes da venda de
bilhetes para certos espectáculos ou das datas de realização de certas
promoções em equipamentos informáticos (em ambos os casos, bens de consumo não
urgente)?
Mesmo se olharmos para lá das nossas fronteiras,
quem não viu já as imagens da balbúrdia que se regista em diversos espaços
comerciais aquando do início das épocas de saldos ou em datas em que se
realizam promoções especiais como a Black Friday americana?
Mesmo fora dos padrões “normais” desta
promoções, quem não viu as imagens das centenas que aderiram às promoções
daquelas lojas de roupa que ofereciam os seus produtos aos primeiros clientes a
entrarem nus ou semi-nus (como foi o caso da espanhola Desigual em Janeiro
último) nas suas lojas?
Na perspectiva dos consumidores, pois, esta foi
uma promoção como tantas outras, que foi bem aproveitada por quem se dispôs a
suportar os incómodos inerentes, fossem estes cidadãos mais carenciados,
comerciantes e gestores de outras empresas de restauração ou o comum dos
consumidores do mais variado leque de produtos. E, convenhamos, desde quem
procurou assegurar os seus consumos mais imediatos a quem investiu várias
centenas/milhares de Euros na compra de produtos com um desconto tão
substancial, chega a ser ridículo sugerir que tais compras resultaram de um
mero impulso consumista.
Na óptica dos trabalhadores da empresa, a
realização de tal promoção num dia como o primeiro de Maio, com os sindicatos à
porta, envolve uma espécie de “provocação” aos que contestam a abertura das
superfícies comerciais nesta data, enquanto que a promoção em si terá provocado
uma enorme sobrecarga de trabalho e stress no exercício das suas funções.
Todavia, a Jerónimo Martins parece querer
ressarcir os visados por tal facto, quer com o pagamento de remunerações
extraordinárias muito acima dos referenciais legais em vigor, quer pela
atribuição de novos descontos na aquisição dos seus produtos.
Do ponto de vista da regulação do mercado, cada
uma das entidades parece ter também cumprido a sua função: a Comissão Europeia
não encontrou vícios de relevo nesta prática e a ASAE e a Autoridade da
Concorrência desencadearam as diligências inerentes às desconformidades pontuais
encontradas.
Já quanto aos fornecedores da empresa,
conseguiram, por um lado, assegurar a venda de maiores quantidades dos seus
produtos. Por outro, terão provavelmente que partilhar parte do esforço
comercial inerente à promoção, mas não é crível que o façam de forma
substancialmente distinta do que acontece em relação a todas as outras
campanhas deste tipo de superfícies.
Resta avaliar a perspectiva do próprio Pingo
Doce / Jerónimo Martins e os motivos que terão estado na base de tal
iniciativa. Obviamente, nem podemos olhar para a empresa como uma instituição
benfeitora que procurou responder à crise que assola o País, nem tratar os seus
gestores como uma trupe de malfeitores que apenas se limitaram a escoar stocks
perto do fim do prazo de validade à custa de pobres e desinformados,
conseguindo mesmo assim assegurar ganhos substanciais.
Bem pelo contrário, visto de fora, tenho poucas
dúvidas que o Grupo perdeu dinheiro com esta promoção, E, mesmo do ponto de
vista da imagem pública, esta foi uma opção de comunicação que envolveu riscos,
com o volume de exposição a não se traduzir integralmente em ganhos de imagem.
Pior, como o tempo poderá comprovar, esta
iniciativa poderá acarretar custos directos e indirectos substanciais, para a
empresa e para o sector, que põe em causa a sua razoabilidade e motivações na
perspectiva do promotor.