terça-feira, 9 de setembro de 2008

É a vida, Zé!


Desta feita, o Zé estava a encarar o final de mais um Verão com estranho alívio.
Mais do que a satisfação pela complacência que S. Pedro tivera para com as florestas e matas do seu País ou a satisfação que registava pela impossibilidade de mergulhar nas multidões que desaguaram na Costa Algarvia em período de contenção com as despesas de férias dos nativos, Zé sentia que o Outono teria que ser para ele um período de reflorescimento.
Afinal, nada poderia superar as agruras daquele Verão cinzento.
Para trás, concluído o curso de engenharia, vira-se integrado no êxito do Plano Tecnológico que tanto acarinhara, engrossando as estatísticas de criação de emprego que meticulosamente construíra, tendo sido contratado por uma empresa de vanguarda de um dos mais dinâmicos clusters nacionais: o sector dos call-centers.
As condições de trabalho até não eram más e estavam em linha com o espírito da flexisegurança que bebera dos exemplos nórdicos que lera nas últimas férias. Pudera optar pelo horário de trabalho, quer na duração (5, 6 ou 8 horas), quer no período (manhã, tarde e noite/madrugada) e até beneficiara de um contrato de trabalho – coisa rara para a maior parte dos jovens licenciados da sua lusa pátria -, com pagamento de férias e outras regalias.
Mesmo o vencimento estava muito acima do salário mínimo nacional, bem na média dos rendimentos da generalidade da população activa, sem que tivesse que suportar os encargos com habitação (ainda morava na casa dos país), alimentação e família (que não tinha e nem se sentia motivado a ter, apesar da crescente flexibilidade “contratual” que, neste domínio, o seu Governo queria também implementar).
Pensando que seria o período mais descansado, optara pelo horário da madrugada, das 0:00 às 6:00 da manhã, longe de supor que iria passar as noites com o número crescente de pessoas que transforma este tipo de serviços no confessionário com que combatem o isolamento gerado pela actual vida em sociedade. Afinal, aqueles indivíduos que ligam e mandam sms para os chat e passatempos que passam de madrugada na televisão existem mesmo, não são uma mera montagem dos canais para ocupar os tempos mortos de emissão…
Logo a meio de Junho, poucos dias depois de iniciar funções, quase perdera o emprego porque não conseguira encontrar uma bomba com combustível disponível, por via do bloqueio que se registava em várias cidades do País.
No final de Julho, ele e uma colega foram ameaçados com uma pistola à saída do trabalho por um casal dos seus quarenta anos, mas mais ágeis que muitos dos atletas que viu competir mais tarde em plenos Jogos Olímpicos, que lhes subtraíram a carteira e um colar (a ela) e o telemóvel (a ele), por entre as ameaças de que estavam quase a virar “queijo suíço”.
Menos mal o prejuízo, porque a verdade é que depois do início de funções, a utilização daquele utensílio até lhe causava uma espécie de alergia no ouvido.
Algumas semanas mais tarde, porém, um grupo de jovens larápios (assim os identificaram os clientes do café em frente a casa) arrombaram o carro que deixara estacionado há já algumas semanas – tornara-se um utilizador preferencial dos transportes públicos por economia de recursos – apenas para levar um par de óculos de sol e uns ténis que deixara pousados no banco de trás.
Também aqui, o prejuízo era sobretudo de carácter sentimental uma vez que perdera a força e a companhia dos colegas com que fazia o seu jogging matinal, ainda antes do regresso a casa.
Por vezes, pensava se não deveria também ele emigrar, como o haviam feito antes outros nas mesmas condições.
Nas muitas conversas que tinha com o António, também ele engenheiro mas hoje a trabalhar numa organização internacional de natureza humanitária, colocava-lhe sistematicamente essa questão: E se eu fosse fazer campanha pelo sim ao Tratado de Lisboa num futuro Referendo na Irlanda?
O António, homem ponderado, dialogante e conciliador, deixava-lhe sempre o mesmo conselho: “Tem calma! Aguenta! É a vida, Zé!”

1 comentário:

Anónimo disse...

Num país onde o primeiro-ministro vive na realidade virtual, o país real manifesta-se farto da manipulação governamental e prepara-se para em 2009 lhe mostrar o cartão vermelho directo.