segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

O neo-clima malsão


Por entre o estado de espírito algo depressivo em que o País se encontra mergulhado, as sucessivas contradições, avanços e recuos que envolvem os grandes projectos nacionais, as trapalhadas ministeriais, a discussão na praça pública da conduta privada do Primeiro-Ministro (nos planos profissional e académico) e tantas outras fontes de desalento comum, quase nem se percebe que já passaram três anos desde as últimas Eleições Legislativas”.

Nem de propósito. Começava assim a minha colaboração com este jornal na semana em que o País acordou espantado com o contundente diagnóstico que a SEDES – uma das mais reputadas e independentes associações cívicas existentes – traçava de Portugal num documento tornado público na passada Sexta-feira.
Aí podia ler-se que se sente em Portugal "um mal-estar difuso", que "alastra e mina a confiança essencial à coesão nacional". Pese embora reconhecendo que há traços deste sentimento que não são “exclusivamente nacionais”, os signatários – onde se reúnem protagonistas de todos os campos políticos e partidários, bem como diversos cidadãos independentes – alertam para que “este mal-estar e a degradação da confiança, a espiral descendente em que o regime parece ter mergulhado, têm como consequência inevitável o seu bloqueamento". Daí que, assegurem, “se essa espiral descendente continuar, emergirá, mais cedo ou mais tarde, uma crise social de contornos difíceis de prever".
O documento elaborado pela Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES) centra a sua atenção em três aspectos fundamentais: a degradação da confiança no sistema político, a estranha interacção entre a Justiça e a Comunicação Social e a má orientação das políticas de promoção da segurança e de combate à criminalidade.
Nesta última vertente, o reparo directo mas não explicitado vai para a ASAE – Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica, expresso na crítica ao “fundamentalismo ultra-zeloso, sem sentido de proporcionalidade ou bom-senso” em áreas “menos relevantes para as necessidades do bom funcionamento da sociedade”. Pelo que se sugere: “para se ter uma noção objectiva da desproporção entre os riscos que a sociedade enfrenta e o empenho do Estado para os enfrentar, calculem-se as vítimas da última década originadas por problemas relacionados com bolas de Berlim, colheres de pau, ou similares e os decorrentes da criminalidade violenta ou da circulação rodoviária e confronte-se com o zelo que o Estado visivelmente lhes dedicou”.
Questionando os valores em vigor, a SEDES sustenta que “o Estado tem uma presença asfixiante sobre toda a sociedade, a ponto de não ser exagero considerar que é cada vez mais estreito o espaço deixado verdadeiramente livre para a iniciativa privada”. E, acrescenta, esse Estado “demite-se muitas vezes do seu dever de isenta regulação, para desenvolver duvidosas articulações com interesses privados, que deixam em muitos um perigoso rasto de desconfiança”.
Afinal, conclui-se também neste documento, “num ambiente de relativismo moral, é frequentemente promovida a confusão entre o que a lei não proíbe explicitamente e o que é eticamente aceitável”, pelo que “é precisamente nessa penumbra que proliferam comportamentos contrários ao interesse da sociedade e ao bem comum (…) e que medra a corrupção, um cancro que corrói a sociedade e que a justiça não alcança”.
Por todos estes motivos, compreende-se melhor o “acentuar da degradação da confiança dos cidadãos nos representantes partidários de todo o espectro político”, o que, caso se venha a consumar um eventual fracasso da democracia representativa, "criará um vácuo propício ao acirrar das emoções mais primárias em detrimento da razão e à consequente emergência de derivas populistas, caciquistas, personalistas".
Ora, segundo a SEDES, só resta aos partidos “serem capazes de mobilizar os talentos da sociedade para uma elite de serviço”, “evitar que a sua presença seja dominadora a ponto de asfixiar a sociedade” e jamais serem “um objectivo em si mesmos", devendo também combater-se a “tentacular expansão da influência partidária", quer na “ocupação do Estado", quer "na articulação com interesses da economia privada".
Se as linhas de força do documento merecem um consenso alargado, o principal reparo que se pode fazer ao texto divulgado pela SEDES – e, mormente, aos seus subscritores, em que se incluem nomes como os de Vítor Bento, M. Alves Monteiro, Luís Barata, Luís Campos e Cunha, João Ferreira do Amaral, Henrique Neto, F. Ribeiro Mendes, Paulo Sande e Amílcar Theias-, é o facto de os mesmos se terem demitido de assumir o papel de catalisadores dessa mudança no seio dos Partidos com que colabora(ra)m politicamente, e pelos quais foram indigitados para cargos da mais alta responsabilidade.
Faz lembrar, até, o manifesto que foi difundido nas vésperas do 25 de Abril de 2000, quando Ministros do então Governo de António Guterres e outros altos dirigentes do PS (como Jorge Coelho, Pina Moura, António Costa e Alberto Martins) “condenaram as privatizações, o mercado global e o clima malsão que se vivia no País”.
Também aí se assegurava que ”a legião de excluídos não parou de aumentar“, que se notavam ”a nível colectivo, sintomas de nervosismo“ e que havia que alertar para os perigos da ”doutrina neoliberal”.
A diferença, oito anos depois, é que António Guterres parecia, à beira do José Sócrates de hoje, um mero aprendiz de feiticeiro…

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