terça-feira, 29 de abril de 2008

Arroz amargo


Imagine que pousa o jornal, se dirige a um supermercado para fazer as suas compras e que não lhe permitem adquirir mais do que um certo número de quilos de arroz.
Estará a ser alvo de um “apanhado televisivo”? Terá entrado sem querer num filme de ficção científica sobre um futuro distante, pós-apocalíptico?
Se, todavia, for cliente das americanas Costco Wholesale Corp. ou Sam’s Club (do Grupo Wal-Mart) ou da britânica Tilda, esta é uma situação possível de se ter verificado desde a semana passada, altura em que estas cadeias de distribuição decidiram racionar a venda de arroz aos seus clientes.
Na base de tão surpreendente quanto drástica decisão está um conjunto de factores extremamente graves, que alicerçam uma das maiores crises alimentares que a humanidade enfrentou nos tempos modernos, com consequências que se poderão vir ainda a amplificar no tempo.
Como em qualquer mercado, este tipo de decisão “administrativa” de restrição da oferta só pode ser explicado num contexto de grande desequilíbrio entre as duas forças em contenda, ou por escassez de oferta ou por excesso de procura.
Antes mesmo de tal medida, é óbvio que o mercado tenderia a ajustar-se por si, via subidas do preço do bem, o que veio efectivamente a acontecer pese embora a delicadeza “social” do produto em questão.
Na verdade, ao longo do último ano, os preços do arroz nos principais mercados internacionais registaram subidas exponenciais, em linha com o que sucedeu com vários outros cereais, por motivos de natureza similar.
O que deu então origem a tão inusitado fenómeno?
Mais do que um aumento de procura por via do crescimento da população mundial ou de uma redução da oferta em resultado de uma diminuição da capacidade produtiva (em resultado, por exemplo, de condições climáticas adversas) – que têm também ocorrido -, o principal factor explicativo reside na utilização alternativa destes produtos, nomeadamente para a produção de combustíveis.
De facto, à medida que o preço do petróleo tem também registado crescimentos incontidos nos mercados mundiais, a generalidade dos países que pagam elevadas facturas energéticas e que dispõem deste tipo de recursos, tem optado pelo uso alternativo destas matérias-primas para a obtenção de bio-combustíveis.
A conjugação de cada um destes contributos deu assim origem ao actual estado de coisas, para o qual parece não haver solução à vista.
Em resultado desta evolução recente, muitos países decidiram limitar o seu volume de exportações, de forma a assegurar a alimentação das suas populações e a dispor de recursos para a produção dos referidos combustíveis.
Tal opção vem agravar ainda mais a pressão inflacionista sobre o preço destes bens e estimulou a ocorrência de práticas de açambarcamento por parte dos consumidores em certos países desenvolvidos, que agora se pretendem combater com medidas como o referido racionamento das vendas.
Para agravar a situação, a subida dos preços dos cereais terá várias repercussões em outros bens alimentares, aumentando ainda mais a pressão sobre a inflação nos países desenvolvidos.
Por sua vez, nas economias mais débeis do Planeta, este cumular de factos pode também dar origem a diversas situações perniciosas, desde a incapacidade de satisfazer a crescente procura de franjas da população que começam a ter acesso a maiores níveis de rendimento, até à própria impossibilidade de assegurar níveis mínimos de alimentação ao conjunto da população mais carenciada, com o que tais situações podem representar ao nível da instabilidade social e política dessas Nações.
Ao longo dos anos mais recentes, foram já várias as incidências de motins por força da dificuldade de acesso a bens alimentares ou de contestação com a evidente escalada dos preços, da América Latina a África, a vários países orientais ou do Pacífico.
Em plena Europa, os italianos fizeram em 13 de Setembro de 2007 uma “greve à pasta”, em resposta a eventuais movimentos especulativos no preço deste produto.
No conjunto desta realidade, há inúmeras questões que permanecem sem uma resposta clara, dando indicações contraditórias sobre a evolução futura destes mercados: será mesmo economicamente eficiente o recurso a estes cereais na produção de combustíveis? Poderá aceitar-se o recurso a alimentos geneticamente modificados para compensar o défice de oferta mundial? Será este o tempo de voltar a apostar no sector primário?
Como parece claro, Portugal não passará incólume a esta crise, faltando apenas apurar qual a repercussão concreta e o timing da mesma e as medidas que o Governo irá tomar para tentar contornar essas consequências.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Descentralização Cultural


Não será difícil demonstrar que os níveis de desenvolvimento de uma sociedade se medem em larga medida pelos níveis de cultura do seu povo, por via de quanto os mesmos traduzem de conhecimento, capacidade criativa, abertura de espírito a diferentes realidades e vocação inovadora.
Nesse sentido, exige-se da parte dos organismos públicos uma real política de fomento da cultura, quer no apoio à “indústria cultural”, quer na promoção do acesso generalizado dos cidadãos a este bem indutor de maiores níveis de qualidade de vida.
Se atendermos ao Programa do Governo para este sector, podem identificar-se vários compromissos e objectivos interessantes, bem corporizadas pelas três principais prioridades elencadas: “retirar o sector da cultura da asfixia financeira em que três anos de governação à direita o colocaram”; “retomar o impulso político para o desenvolvimento do tecido cultural português” e “conseguir um equilíbrio dinâmico entre a defesa e valorização do património cultural, o apoio à criação artística, a estruturação do território com equipamentos e redes culturais, a aposta na educação artística e na formação dos públicos e a promoção internacional da cultura portuguesa”.
Na prática, porém, as iniciativas concretas e os resultados de tais políticas não podem ser considerados famosos.
Assim, depois do desnorte que caracterizou boa parte da actuação da anterior titular do cargo, e dos inúmeros conflitos que alimentou em diversas frentes do meio cultural nacional, impende sobre o novo Ministro da Cultura a responsabilidade de pacificar o sector e introduzir mecanismos que viabilizem a concretização das metas enunciadas.
No domínio do acesso à cultura, parece ser fundamental acautelar uma real política de descentralização cultural, até enquanto instrumento de coesão territorial.
Para tal, deve o Governo contribuir para a referida “criação de públicos”, sobretudo através da garantia de existência de uma oferta acessível e diversificada em diversos pontos do território nacional, e não apenas nas grandes metrópoles de Lisboa e Porto.
Ora, aquilo que se tem observado é, bem pelo contrário, uma inaceitável concentração dos exíguos recursos que são colocados à disposição dos responsáveis desta área da Governação nos equipamentos culturais das duas Grandes Áreas Metropolitanas, e no apoio a programas e iniciativas de impacto público manifestamente reduzido.
Se adicionarmos a esta ausência de investimento público e aos condicionalismos do acesso aos financiamentos comunitários da área da Cultura, a atitude deliberadamente restritiva do financiamento privado à Programação Cultural (em especial, através do Mecenato Cultural), parte substancial do País fica condenada a uma reduzida dinâmica e a uma espécie de circuito alternativo dos eventos culturais de massas.
A saber, se pegarmos no exemplo do Teatro Circo de Braga – que ontem completou 93 anos de existência – verificamos que a sua Administração se depara com uma equação de difícil resolução: não recebe qualquer apoio estatal, não tem ainda acesso a fundos comunitários e foi-lhe barrado, até ao momento, por expressa iniciativa do Governo, o acesso ao Mecenato Cultural.
Tudo somado, como pode ser financiada uma programação que se pretende intensa, de qualidade, eclética e ajustada aos gostos de todos os públicos, e igualmente suportada numa necessária política de “serviço educativo” potenciadora da criação de novos públicos?
Obviamente, com recurso ao auto-financiamento (neste caso, por via de injecções de capitais do accionista maioritário – o Município de Braga) e às receitas próprias (alugueres e bilheteiras).
Como facilmente se percebe, na actual conjuntura económica não são estas fontes de financiamento significativo, ao ponto de poderem, de per si, suportar estruturas e custos de programação de equipamentos de dimensão média como o Teatro Circo, sendo totalmente irrealista assumir tal objectivo.
Sem defender a estatização da cultura, o mesmo Programa do Governo dá algumas pistas sobre quais deveriam ser os caminhos a seguir: “reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis”, “desenvolver programas de cooperação entre Estado e autarquias, que estimulem também o crescimento da proporção de fundos públicos regionais e locais investidos na cultura”; “valorizar o investimento culturalmente estruturante, na negociação do próximo Quadro Comunitário de Apoio (2007-2013)”; “rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão”; e “alargar a outras áreas e, em particular, ao funcionamento dos organismos nacionais de produção artística, o princípio de estabilização de um financiamento plurianual”.
A meu ver, só assim se poderão criar condições para a sustentabilidade a longo prazo da política e das actividades culturais, com o que de positivo também poderá resultar na própria dinamização económica desta sector e das actividades conexas, em benefício deste tipo de equipamentos culturais e dos territórios em que se encontram implantados.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Crescimento Económico

Ao longo dos últimos anos, as variáveis do emprego (ou, mais precisamente, do desemprego) e do défice das contas públicas têm vindo a concentrar a atenção das discussões em torno de aspectos macroeconómicos no nosso País.
Neste período, as taxas de inflação mantiveram-se controladas pela política monetária do Banco Central Europeu e as taxas de juro acabaram por repercutir a nível europeu as dificuldades que atravessaram os mercados de crédito internacionais (ainda sem retorno à vista).
E, se é certo que os custos de várias matérias-primas atingiram crescimentos exponenciais, que o câmbio do Euro face ao Dólar foi também atingindo sucessivos máximos, ninguém compreende a pouca atenção que o “crescimento económico” tem merecido na definição das diversas políticas nacionais.
Desde logo porque, se voltarmos às tais duas preocupações dominantes da agenda política e mediática – o emprego e a consolidação orçamental -, o crescimento económico perspectiva-se como a mais segura e sustentável solução para a ultrapassagem destes problemas estruturais da nossa economia.
Afinal, para criar verdadeiros estímulos à criação de emprego e ao combate à precariedade dos vínculos laborais, é necessário que a economia demonstre um dinamismo sólido, reforçando a confiança de investidores, consumidores e agentes económicos em geral.
Por sua vez, a ocorrência de um crescimento económico sustentado não só potencia um aumento significativa das receitas fiscais (através de toda a tributação directa e indirecta), como reduz a obrigação do Estado assumir diversas responsabilidades de natureza social (reduzindo a despesa) como, do ponto de vista algébrico, eleva o denominador no cálculo do défice das contas públicas (face ao PIB), elevando a probabilidade de cumprimento das metas orçamentais assumidas e/ou impostas pela União Europeia.
Por todos estes motivos, poderá perguntar-se: será que a maior discrição que tem merecido a evolução desta variável se deve a um bom desempenho do nosso País neste domínio? A resposta é infelizmente negativa.
Em verdade, ao longo dos últimos anos, Portugal tem registado sucessivos crescimentos diminutos do seu Produto Interno (e quebras recentes do seu saldo de Rendimentos face ao exterior), em divergência com a média da União Europeia, o que nos tem levado a cair diversas posições no ranking do PIB per Capita europeu.
Neste contexto, chega a ser ridícula a discussão de algumas décimas de variação do Produto de ano para ano, esquecendo a gravidade deste problema estrutural com que não temos sabido lidar de forma determinada e racional.
Por acréscimo, os Governos tendem a assumir atitudes de verdadeira “negação”, escusando-se a assumir atempadamente o fracasso das suas previsões optimistas para os anos subsequentes e insistindo em transmitir mensagens equívocas para os agentes económicos, como se as crises se resolvessem “por Decreto oficial”…
Se atentarmos aos dados estatísticos sobre a evolução da economia portuguesa ao longo dos últimos anos confirma-se a ausência de um padrão de crescimento sustentável de qualquer das rubricas que compõem o Produto: quisemos ser uma economia assente na competitividade externa e na aposta nos bens e serviços transaccionáveis internacionalmente mas a procura externa líquida só assumiu um contributo positivo relevante em 2003 e 2006; apelamos a um reforço dos níveis de investimento privado mas a formação bruta de capital fixo só cresceu significativamente em 2004 e 2007; o consumo privado é o maior alicerce do crescimento mas encontra-se condicionado pelas dificuldades sócio-económicas crescentes e pela evidência de sobre-endividamento dos particulares; a despesa pública (nomeadamente de investimento) mantém um peso deliberadamente residual (ao ponto de se atrasarem projectos estruturantes e o arranque efectivo do QREN - Quadro de Referência Estratégico Nacional).
Na pretérita semana, o Fundo Monetário Internacional (FMI) voltou a rever as suas previsões para os próximos anos para o nosso País, apresentando um cenário pessimista que o próprio Banco de Portugal tendeu a confirmar, embora não plenamente.
De acordo com as previsões do FMI, a economia portuguesa não crescerá este ano mais que 1,3 por cento, face aos 1,9% de 2007. Ainda segundo o FMI, em 2009, o crescimento do PIB ficar-se-á também pelos 1,4 por cento, quando o Governo estimava taxas de crescimento de 2,2 por cento este ano e de 2,8 por cento em 2009.
Tudo isto, num ano em que começará a ser investida a primeira “tranche” dos fundos comunitários do presente período de programação e em que um número esmagador de Autarquias locais vai duplicar o seu nível de investimento tomando os parceiros privados como “barrigas de aluguer”.
Estarão os vários organismos a esquecer estes factores ou teríamos uma verdadeira catástrofe económica se eles não existissem?

terça-feira, 8 de abril de 2008

O cluster da Saúde


Setenta instituições de natureza pública e privada formalizaram na passada Sexta-feira a criação do primeiro pólo de competitividade e tecnologia nacional: o HCP - Health Cluster Portugal.
O projecto agrega entidades da mais diversa natureza, de empresas a Hospitais, de Universidades a Institutos de Investigação, englobando algumas das instituições de referência da área da Saúde no nosso País.
Ao nível dos Centros de Investigação, este projecto abarca, entre outras, entidades como a Fundação Champalimaud, o IPATIMUP - Instituto Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, o IMM – Instituto de Medicina Molecular de Lisboa ou o Centro de Neurociências e Biologia Celular de Coimbra, mas também o INL - Instituto Ibérico de Nanotecnologias, o INESC – Instituto de Engenharia e Sistemas de Computadores (Porto), o CITEVE – Centro Tecnológico da Indústria Têxtil e do Vestuário ou o Instituto Gulbenkian da Ciência, que atestam da transversalidade científica desta área de “negócio”.
Junte-lhes o Avepark (Guimarães) e o Biocant - Centro de Inovação em Biotecnologia (sedeado em Cantanhede), as Universidades do Porto, Minho, Coimbra, Lisboa e Católica, os principais protagonistas da Indústria Farmacêutica nacional, vários fornecedores de dispositivos médicos e prestadores de serviços associados e algumas das principais Unidades de Saúde públicas e privadas para se perceber o compromisso que o “sector” devotou a este projecto.
A liderança formal pertence ao Presidente da Farmacêutica Bial, Luís Portela, ficando a ex-Ministra da Saúde e actual responsável da Fundação Champalimaud, Leonor Beleza, com a presidência do Conselho Fiscal.
Apesar de agregar entidades predominantemente privadas, de o Ministro da Economia, Manuel Pinho, se ter manifestado “surpreendido pelo dinamismo da sociedade civil no projecto do HCP” e de ter a CCDRN – Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte com único representante formal do Estado, não se devem desvalorizar os méritos públicos nesta importante iniciativa estratégica para o desenvolvimento do nosso País e para a diversificação da nossa base empresarial.
Em verdade, temos pelo menos que recuar até 2006, altura em que foram publicados os primeiros esboços do Norte 2015 – o estudo de posicionamento estratégico prospectivo que a CCDRN promoveu como documento norteador do novo Quadro Comunitário, para identificar as primeiras referências estruturadas à emergência de um cluster ligado à “Saúde, Dispositivos Médicos e Farmacêutica” no Norte do País.
Não terá sido, pois, por acaso que a própria formalização do Health Cluster Portugal tenha tido lugar nas instalações da CCDRN, pese embora a manifesta abrangência nacional das entidades envolvidas.
Como seria expectável e desejável, as prioridades elencadas no Norte 2015 foram repercutidas nas opções estratégicas insertas no Programa Operacional da Região Norte, no Eixo 1 –Competitividade, Inovação e Conhecimento, tendo como objectivo o “Apoio à criação e consolidação de “clusters” emergentes e de empresas de base tecnológica em sectores que promovam o interface com as competências e capacidades regionais em ciência e tecnologia”, o que é convergente com as políticas de apoio às Estratégias de Eficiência Colectiva que a Agenda para a Competitividade também consagra.
Através deste tipo de iniciativas, pretende-se promover uma maior interligação entre a produção do conhecimento científico, a investigação aplicada e o posicionamento comercial dos produtos e serviços que possam vir a ser patenteados, a nível internacional, em áreas de elevado valor acrescentado.
A inovação é a palavra de ordem, para o que se pretende aproveitar o reconhecimento do trabalho produzido no meio académico envolvido, a experiência de sucesso de instituições como a Bial e o potencial que pode resultar de uma lógica de efectiva cooperação entre toda esta gama de instituições.
Esta associação assumiu como áreas prioritárias iniciais os domínios do bem-estar e envelhecimento, das doenças neurodegenerativas, dos vários tipos de cancros e doenças cardiovasculares e a tele-medicina.
Como seria de esperar, os projectos que venham a ser apresentados merecerão uma especial majoração nas diversas candidaturas que podem vir a formular aos Programas Operacionais referidos do Quadro de Referência Estratégica Nacional, exigindo-se ainda um substancial esforço da parte dos promotores.
É que, como tantas vezes acontece, basta que as entidades públicas assumam o seu papel de facilitadoras para que algo de bom possa surgir da dita sociedade civil.